Nico González e um déjà vu, o culto da intensidade

Remy Martins
6 min readSep 19, 2023

À cada vez que se abre (e fecha) uma janela de transferência, nasce um novo mundo de possibilidades, esperanças mas também ansiedades.

29 de julho de 2023, Nico Gonzalez é confirmado como reforço do FC Porto. Moldado em terras catalãs para assumir protagonismo no coração do jogo, mais como interior do que trinco, embora possa desempenhar qualquer função do meio campo. Entretanto, para impedir grandes consequências à nível tático, ligadas a saída do Uribe, chegou também Alan Varela. A priori, perfilava-se aqui uma dupla para a qual o assunto da complementaridade, para quem os conhece, não despertava incertezas, antes pelo contrário.

14 de agosto de 2023, Nico Gonzalez estreia-se com a camisola azul e branca diante do Moreirense. 20 minutos para evidenciar algumas amostras de recursos tático-técnicos cuja raridade de exibição neste plantel portista, reivindicava por si só, e já, outro estatuto.

20 de agosto de 2023 é sinónimo de estreia a titular no duplo pivô tão acarinhado pelo Sérgio Conceição. Numa equipa tão mecanizada foi o lápis que distinguiu outros caminhos, outras possibilidades. O FCP não só usufruiu da sua precisão nas transmissões como também da sua valentia em arriscar, parte indissociável de qualquer processo que envolve criatividade. Toni Martinez abriu o marcador e, nesse lance, ficou na retina o passe de primeira para oferecer ao Galeno a possibilidade de fixar em condução e, assim, libertar espaço para o movimento do Toni Martinez.

Golo Toni Martinez vs Farense (Passe ao primeiro toque do Nico para Galeno)

Seguiu-se o embate frente ao Rio Ave que salientou outra exibição convincente do médio espanhol. Não havia como contrariar essa afirmação soberana dentro do XI e, naturalmente, essas exibições prévias eram testemunhas da vontade e perseverança em assumir e cumprir com às expectativas que a sua vinda induziu.

03 de Setembro de 2023, o balde de água fria. O FCP é o anfitrião dessa quarta jornada da Liga e recebe o Arouca que, perante (mais) uma exibição paupérrima do conjunto do SC, soube danificar e até castigar os Dragões que tiveram na impetuosidade goleadora do Evanilson, a sua salvação. Para o Nico Gonzalez, nem por isso. Minuto 84’, Cristo Gonzalez recupera a bola num duelo com o Pepê, sai em condução e apresenta-se de novo perante o brasileiro. Com ambição de contrariar os desequilíbrios e vantagens (para o Arouca) que poderiam ser coincidentes desse 1x1, o ex-Barça aproxima-se para gerir superioridade numérica. Com o drible de fora para dentro incomportável devido ao posicionamento do Nico Gonzalez, o Cristo opta pelo drible curto entre ambos. Com sorte à mistura (também faz parte), depois do toque do Pêpe, o Arouquense ainda consegue tocar caprichosamente na bola. A mudança de trajetória acaba por enganar o Nico que, em descoordenação, oferece nova possibilidade ao Cristo de danificar. Peca pela atitude, nesse momento específico, que salienta uma forma de resignação perante o poder do fortuito.

Golo Cristo González vs FC Porto

15 de Setembro de 2023, Estrela Amadora vs FC Porto. Nicolás González ? Nem no banco.

No futebol o que costuma guiar a narrativa é o resultado e banaliza-se o facto de lisonjear até o que foi mau quando o resultado nos convém e vice versa. O vício nasce aí, convoca e faz com que apareçam os oportunistas, desonestos ou populistas. Assim, a « intensidade » é chamada ao assunto. « Falta-lhe intensidade ! », dizem eles. Mas afinal o que se esconde atrás dessa palavra que se usa como se fosse a panaceia universal ? Essa palavra que contribuiu para uma mudança de paradigma no que toca a hierarquização de prioridades : técnica vs força (física, entende-se).

Estamos, cada vez mais, correndo o risco de piorar as probabilidades que o espetáculo não corresponda com o que de mais puro este desporto oferece. E essa pureza não se mede, contempla-se. Não se pode (e não se deve!) esquecer a vertente indómita inerente ao futebol. Usar a « intensidade » como único e exclusivo argumento para legitimar a utilização dum ou outro jogador é condizente com a vontade histérica e incoerente de querer analisar e comentar o futebol através da única ferramenta das estatísticas. A « intensidade », e os dados métricos que costuma induzir, são completamente intranscendentes se não forem usados como complementaridade do que se viu. Sem critérios predefinidos para os usar, não nos levam à nenhum lado.

Reclama-se entrega, corrida e sacrifício antes de precisão, valentia e sabedoria. Vibra-se com o que se desenvolve o mais depressa possível e não se dá o devido valor à pausa, esquecendo, muitas vezes que, tal como na F1, para poder acelerar, há que travar com antecedência. Correr é o predileto mas o futebol é um jogo e não nos podemos esquecer da quintessencia deste desporto. Dentro das quatro linhas, só as jogadas de contra-ataque não toleram a pausa. Conduzir em velocidade e ser intenso não é indissolúvel do « ser bom jogador », antes pelo contrário. Haverá sempre, por predisposições( físicas) ou indisposições (técnicas) naturais, quem corra mais, por necessidade / sobrevivência e quem corra menos, porque resolve com mais facilidade e aí é que são verdadeiramente úteis (este jogo exige sobretudo inteligência). Nesse ponto, será sempre importante não confundir valor com utilidade.

Se continuarmos nesse sentido, é ver como se define um jogador veloz.

  • A velocidade no sentido mais estrito, à nível atlético, que corresponde ao tempo que cada um leva para percorrer uma distância definida.
  • A velocidade cognitiva : o pensar rápido, ou o facto de usufruir do instinto (memória subconsciente), que melhora a capacidade na tomada de decisão
  • A velocidade através da precisão técnica : pode ser na forma como se faz uma recepção ao primeiro toque, como se muda a perspectiva duma jogada e a capacidade colectiva, a partir do individual, através dum só passe.

Várias vezes as duas mais importantes são as que são preteridas nas análises e só se olha através do prisma atlético. Não existe nada mais inconsistente. Afinal, quem é que joga ao futebol ? Futebolistas ou profissionais de atletismo ? A imensa diferença é que tudo o que faz o futebolista é coincidente com o esférico. Só para relembrar qual é o elemento essencial.

O mau dos números é que não se discutem, são factuais e ponto. Usam-se para corroborar qualquer narrativa porque não induzem nada mais do que um dado métrico. Então qual é o mal da intensidade se ela se refere único e exclusivamente à esses números ? Não há como gerir debate ! É factual, e ponto (Dizem eles). A lógica é a mesma que aquela aplicada pelos que só têm olhos para os resultados e não valorizam, processos, trajetórias, planejamentos, recursos.

O Nico é mais um (quem se lembra do Oliver ?) que padece dessa vontade perniciosa em querer justificar tudo através do científico sem se dar ao trabalho de olhar (stricto sensu) e refletir. Ao que se diz, já não aguentam com 90 minutos mas até com menos dá para realçar as inúmeras qualidade do Nico Gonzalez. Além de tudo, numa posição / função tão importante como aquela que ocupa o Nico. Parece-me óbvio que o nativo da Corunha, ajuda a ter mais controle, capacidade interpretativa e é um auxilio incansável para o processo criativo. A facilidade em jogar ao primeiro toque, em descobrir espaços através da associação, gerindo e provocando situações de vantagens e benefícios claros. Fluidifica o jogo, não o inibe.
Cria possibilidades, não as impede.

Em definitivo, ter Nico Gonzalez em campo é o Honoris Causa da necessidade de acarinhar a bola, sempre, porque ela « no se mancha ».

Rémy Martins

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Remy Martins

Futebol, paixão pelo jogo e pela forma de o jogar. « Le football doit être plus que seulement gagner »