Um futebol cada vez mais rígido e sua essência mantida refém : o desaparecimento gradual dos criativos.

Remy Martins
6 min readJul 4, 2022

Num futebol cada vez mais de regra e esquadro que induz um certo conservadorismo e restringe as possibilidades criativas em prol da doutrina da « ordem e disciplina » (quiçá excessiva), como se o futebol fosse xadrez, há jogadores cada vez mais raros, que ainda lutam dentro desse contexto : os criativos.

Para personificar esses jogadores invulgares que não caem na automatização e lutam, através do engano, intuito, imaginação e liberdade, essenciais para resolver através da tomada de decisão, podemo-nos referir à Thiago, Modric, Bernardo Silva, De Bruyne, Verratti, Pedri, como melhores expoentes dum talento criativo cada vez mais escasso. São aqueles que distraem, liberam espaços e também os criam.

Crédutos fotográficos : Mark Cosgrove/News Images/Sipa USA

« O jogador que tem arte produz uma emoção muito particular. É aquilo que mais se respeita, por mais que um campeão feito de esforço físico surja por aí. O que mais fica em mente e o que mais se respeita é o talento. » César Luis Menotti

Esta tendência que atenta contra o talento nasce duma especificidade inerente à forma de ver o jogo e da priorização que se faz em prol do conservadorismo. De facto, já não é anormal ver treinadores que fazem prevalecer a defesa antes do ataque. Desde logo, as características valorizadas na hora de avaliar jogadores estão inevitavelmente em correlação com esse pormenor. Quem acaba por ser favorecido são os ditos « trabalhadores » do meio campo que lutam e correm mais. Mas quem passa o tempo a correr, afinal, não joga. Aliás, no futebol, a capacidade dum jogador é, tradicionalmente, medida em função do seu talento : das predisposições técnicas e cognitivas em relação ao jogo.

O paradoxo dessa priorização dum momento do jogo específico é que induz uma restrição das possibilidades no momento da recuperação da bola. Recuperar a bola é uma coisa, saber o que fazer com ela, depois, já necessita sabedoria e qualidade na tomada de decisão. Não é só tirar a bola ao adversário, também há que resolver a seguinte etapa : como reagir e agir ?

A idiossincrasia do jogador é essencial na hora de definir um determinado estilo de jogo. Partindo desse conceito, o menosprezo do talento e da criatividade em prol do destruídor atlético, por parte dum treinador, é insensato porque é volitivo. Essa propensão em desconsiderar o jogador « baixinho » ou não tão robusto mas com melhor habilidade com bola e melhor capacidade criativa em prol de jogadores maiores e mais forte fisicamente, que destacam-se na capacidade em serem impetuosos nos duelos, roubar ou simplesmente impedir que se joga coincidiu com uma mudança de paradigma também nos escalões inferiores de formação.

O contexto mudou e os incentivos também. Promove-se trabalho e sacrifício que, obviamente, não coincidem com a vontade de estimular os sentidos, a criatividade, a tomada de decisão e a inegável alegria ligada ao jogo. Contudo, o Futebol, desde sempre, incentiva o que surpreende. Desde logo, é de altíssima incoerência que as capacidades físicas suscitam tanta preocupação.

« Para mim, o conceito básico é que no futebol não há limites conhecidos para o desempenho físico. Devido às características pessoais, há jogadores que correm mais do que outros. É certo. Mas porque precisam disso, porque têm menos recursos técnicos. » César Luis Menotti

É óbvio que a preparação física é importante mas existe uma exageração explícita dessa importância que interfere da pior maneira sobre o protagonismo principal que se tem de atribuir. Isolar a especificidade física sem se referir à ela como parte duma globalidade é pernicioso. Costuma-se usar as estatísticas como o melhor advogado dos mais « esforçados » na hora de os avaliar : quilómetros percorridos, duelos ganhos, recuperações, (critérios duvidosos…). Ou seja, dados isolados e irrelevantes se não forem confrontados com o essencial deste desporto.

« Uma coisa é a informação e outra o critério para discriminá-la, e acho que corremos o risco de analisar em demasia o futebol. O risco é aumentar a importância dos detalhes, tornando o essencial secundário. » Jorge Valdano

Além disso, na sua mais profunda natureza, o futebol é um desporto que promove valores estéticos próprios que não podemos desconsiderar : habilidade, sensibilidade, imaginação, interpretação, criação, inteligência. São esses valores que conferem o descomunal poder emotivo e atractivo do Futebol. Aliás, devia ser óbvio que um jogo de futebol, por si só, tem de ser observado muito além dum simples resultado. A anormalidade é que isso pareça cada vez menos evidente…

O « ganhar seja como for » também contribuiu, ao longo dos anos, para restringir o acesso ao protagonismo dos mais habilidosos e pensativos. O futebol como reflexo da nossa própria sociedade que, cada vez mais, promove o êxito sem se preocupar do « como ? ». Aliás, não é nada espantoso vindo dum futebol desnaturado que já não salienta a sensibilidade estética dos primórdios, com ideologia em contradição com seus valores de origem, que se esqueceu da vertente representativa que lhe era inerente : património exclusivo de quem o criou, popularizou e promoveu : o povo.

Ao priorizar o trabalho e sacrifício, oferecem protagonismo à jogadores que estão mais sujeitos ao desaparecimento da subjetividade própria. Cumprem com as obrigações definidas pelo treinador mas não oferecem variantes. Não são capazes de as modificar. Não convivem bem com o imprevisto. Perdem capacidade de execução e apreciação. Encerram-se dentro dum esquema prefixado, hermético que restringe as possibilidades. É a automatização dos jogadores. Por isso é que não gosto quando falam em automatismos dentro dum colectivo, quiçá seria melhor falar de hábitos. Como consequência, o talento não pode ser potencializado porque não é estimulado.

« Correr é uma decisão da vontade, criar necessita o indispensável recurso ao talento » (M. Bielsa)

Além disso, a sobre-análise do adversário, que é algo explícito hoje em dia, também alimenta o problema. É a dicotomia de dar tanta importância ao que vemos dos outros e planificar excessivamente em função disso, perdendo capacidade em responder aos imprevistos e, consequentemente, assumir a iniciativa. Quem a permite são os que apresentam os devidos recursos : mobilidade, diversão, flexibilidade, associação. A iniciativa e criatividade apresentam não só vantagens no momento ofensivo como no momento defensivo e aí é que cai a narrativa dos que só observam único e exclusivamente através do prisma ataque-defesa. Indubitavelmente, quem procura instalar-se em campo contrário com a vontade de mover o bloco contrário para descobrir espaços estará mais capaz na reação à perda devido à ampliação da zona injogável (zona do fdj) e consequente redução da zona activa. Assim é que se limita a incidência do fortuito enquanto os especuladores irão sempre conferir-lhe maiores probabilidades de influência.

« Tentamos incentivá-los para que eles joguem, para que a bola não seja um problema, para que eles não se desfaçam dela. Por isso escolhemos e olhamos para jogadores que sentem o futebol dessa forma ou que podem chegar à incorporar isso. » Pablo Aimar

Enfim, há cada vez mais fé na especulação e, inevitavelmente, existem consequências para quem representa à escola do protagonismo dentro de campo. Acabo com estas palabras do Osvaldo Ardiles que relebram o essencial : «Um futebol interpretado como um jogo, cujas principais virtudes são a liberdade de criar e a beleza de conceber, que nos obriga a pensar e resolver com inteligência.»

Rémy Martins

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Remy Martins

Futebol, paixão pelo jogo e pela forma de o jogar. « Le football doit être plus que seulement gagner »