Vitinha e Fábio Vieira, reflexo contemporâneo do que, afinal, é intemporal.

Remy Martins
5 min readJun 14, 2022
Image Credit : fcporto.pt *

Não há como negar o coletivo quando se fala de futebol. O regulamento assim o define e serve de pilar para conceituar o que se pretende dentro das quatro linhas. O coletivo, o grupo em geral, sugere interações, associações. Dentro delas, podem evidenciarem-se vantagens que nascem da origem sócio-afetiva entre dois jogadores (ou até mais). A história do futebol o comprova desde sempre e existem vários exemplos de referência explícita:

Pelé e Coutinho, Eusebio e Coluna , Di Stéfano — Puskas, Maldini e Nesta, Messi e Daniel Alves, Ronaldo e Benzema, Xavi e Iniesta, Falcao e Hulk, Cancelo e Bernardo, Kane e Son, … (não vamos procurar ser exaustivos).

Para alguns desses nomes, referir-nos so à dupla até é redutor porque privilegiaram e, melhoraram qualquer um com quem associavam-se, mas vale a vertente didática e ilustrativa dos exemplos nominativos. Hoje em dia, essa herança continua à ser assumida por jogadores cujo talento, sensibilidade, imaginação e memória divulgam-se não só à nível individual como também em parceria. É a sintonia de talentos complementares que jogam e entendem o jogo da mesma forma, não obstante as suas diferentes características, como se fosse espontâneo, sem necessidade de ser raciocinado.

Trataremos de nos focar sobre à dupla portuguesa portuense que faz eco à essas referências históricas do futebol mundial que têm em comum o vínculo com os valores estéticos deste desporto : a criação, o pensamento e o auxílio permanente.

Fábio Vieira e Vitinha. Vitinha e Fábio Vieira.

A cumplicidade entre dois jogadores não se procura, ela aparece. As primícias da harmonia futebolística entre o Vitor Ferreira, aliás Vitinha, e o Fábio Vieira (geração 2000) ocorreram já em tempos de formação e exacerbaram-se quando, em termos de competitividade à escala nacional, chegaram ao mais alto patamar. O contexto não era o ideal devido à descrença endémica da maioria dos clubes para com os jogadores oriundos da formação e, sobretudo, pelos falsos argumentos que conduzem à uma dualidade de critérios na hora de avaliar jogadores (desonestidade intelectual) : « falta de madurez » e « tenra idade ».

No entanto, até na hora em que a subjetividade própria, no momento de os avaliar, é cada vez mais menosprezada, o talento indubitável induz auto-suficiência e não coincide com números, aliás, o talento, não se mede através da numerologia. Finalmente, até os mais desconfiados tiveram de abdicar dos preconceitos e oferecer-lhes o devido protagonismo (mesmo ficando aquém do talento de ambos). Só o Vitinha acabou por usufruir dum papel de máxima preponderância esta época. Essa mesma já acabou e a parceria portuense ofereceu-nos, vezes sem conta, pormenores tático-técnicos de altíssima habilidade.

« Hoje fala-se muito do fisico, da estatística, da tecnologia e, a verdade, é que a essência está noutro lado. » Jorge Sampaoli.

A diferença sugerida pelas características, funções e posicionamento dentro de campo esclarece ainda mais o quão invulgar são essas duplas dentro dum grupo de trabalho. Essa ligação entre ambos induz diferente tipo de protagonismo que tem por objetivo harmonizar o talento dentro da mesma concepção do jogo.

Vitinha, é mais de controle, de associação e paciência. É o cérebro da primeira fase de construção e aquele que é dono do fio condutor do circuito preferencial para poder chegar, juntos, em zonas mais adiantadas. É aquele que aproxima a linha anterior da posterior e hierarquiza às alturas de cada um dentro do coletivo. Permite acomodar-se posicionalmente no âmbito de assegurar a posse e, consequentemente, evitar perdê-la em zonas de risco. Desse modo cuida da construção para que o final seja melhor. Além disso, o Vitinha procura sempre o passe com sentido. Se lateralizar, é para encontrar, a posteriori, o passe vertical que quebra linhas. Sempre procura acionar o jogador que se encontra em melhores condições para dar o devido seguimento ao lance. Enfim, demostra grande capacidade na leitura dos diferentes momentos do jogo.

Fábio, mais confortável partindo duma posição axial mais descaída sobre a direita, assume um papel de diversão na primeira fase de construção. Tenta aproveitar o contexto inerente às fixações que impedem saltos para pressionar, e participa constantemente para ser o jogador livre. Logo, assume o protagonismo, como poucos, em zona de definição onde quem executa deve ser veloz. E quando faço referência à velocidade tem que ser entendido adequadamente. Ou seja, na forma como ele consegue resolver antes dos outros , sem perder precisão (O mal-entendido acontece muitas vezes). Usufrui do engano, através das fintas, tem capacidade para travar e dominar, depois, através da mudança de ritmo. Na hora da tomada de decisão, a criatividade evidencia-se, agilizam-se os sentidos e resolve instintivamente (a importância da intuição, e de estimular o cérebro). Não cai na histeria e frenesi que pode traduzir o convívio com a promiscuidade própria à pressão contrária. Saber decidir em apuros, sem reticências dos espaços curtos é a grande qualidade distintiva dos diferenciados.

Cada um deles atua procurando o mesmo objetivo : levar a superioridade nos seus setores respetivos. Não condescendem com posicionamento prefixado que limitaria às possibilidades de exibir seus recursos. Consequentemente, são donos universais das suas zonas respetivas e a pedra angular da interligação entre elas. Desde logo, impedem anarquia e promovem a conexão grupal.

Golo Fabio Vieira vs Santa Clara — Parceria com Vitinha.

Também, potenciam-se um ao outro enquanto muitos se neutralizam e acabam por serem prejudiciais para todo o coletivo. Dão aquela sensação que, até de olhos fechados, encontrariam-se.

O « espírito amateur » próprio ao « jogar no âmbito de se divertir », que se reflete no futebol destes dois rivaliza com a rigidez da maioria das ideias contemporâneas relacionadas com futebol.

Resumidamente, como já o escrevi algures no Twitter, vejo essa dupla Vitinha e Fábio Vieira como antítese da organização da sociedade contemporânea onde ainda se costuma separar o “ trabalho “ e a “ diversão “. Dentro dum futebol onde se antepõem, cada vez mais, os aspectos atléticos, eles incentivam o respeito do desporto rei. Em outras palavras, só nos falta agradecer-lhes porque são esses jogadores que permitem não só encher estádios como também competir contra o, agora tradicional, « ganhar de qualquer forma ».

Rémy Martins

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Remy Martins

Futebol, paixão pelo jogo e pela forma de o jogar. « Le football doit être plus que seulement gagner »